sábado, 15 de agosto de 2009

Aula prática - Professor convidado: Rubem Alves


"AS COISAS QUE AMO DEIXO-AS LIVRES. SE VOLTAREM, PORQUE AS CONQUISTEI...SE NÃO VOLTAREM É PORQUE NUNCA AS TIVE."


Escreveu-me uma leitora aflita pedindo que eu a socorresse, posto que eu fora a causa involuntária do seu sofrimento. A leitura de um livro escrito por mim, A menina e o pássaro encantado, causara-lhe grande perturbação em virtude de coisas que ali digo através do bico do pássaro. Pois está lá dito que a saudade faz bem ao amor, pois que é justamente na dor da separação que o coração faz a operação mágica de re-encantar os amantes que o cotidiano só faz banalizar. Esta era a razão que sempre levava o pássaro, depois de um tempo de abraços e amassos, a dizer que era hora de partir, pois sem a saudade tanto ele quanto a menina perderiam o seu encanto e o amor acabaria.

Imagino que minha leitora deve ter opinião semelhante à da menina que de forma alguma concordava com as razões do pássaro, o que a levou ao tresloucado gesto de comprar uma gaiola de prata onde encerrou o pássaro adormecido, pensando que, assim, viveriam em lua-de-mel sem fim. O final, quem leu o livro sabe, quem não leu que compre. Pois a leitora pergunta-me se é preciso que haja saudade para que o amor cresça.

Saudade é um buraco dolorido na alma. A presença de uma ausência. A gente sabe que alguma coisa está faltando. Um pedaço nos foi arrancado. Tudo fica ruim. A saudade fica uma aura que nos rodeia. Por onde quer que a gente vá, ela vai também. Tudo nos faz lembrar a pessoa querida. Tudo que é bonito fica triste, pois o bonito sem a pessoa amada é sempre triste. Aí, então, a gente aprende o que significa amar: esse desejo pelo reencontro que trará a alegria de volta.

A saudade se parece muito com a fome. A fome também é um vazio. O corpo sabe que alguma coisa está faltando. A fome é a saudade do corpo. A saudade é a fome da alma. Imagine, agora, você é doida por camarão. Só de falar em camarão a boca se enche d’água. Aí, movida pela fome de camarão, você resolve comprar camarão por um mês. Compra logo 50 quilos, dos grandes, e come camarão no almoço e no jantar. No começo é aquela festa. ‘Camarão à baiana, camarão à grega, camarão empanado, camarão à milanesa, bobó de camarão, risoto de camarão, camarão na moranga’. Pois eu lhe garanto que sua fome por camarão não vai durar uma semana. Ao final da primeira semana só cheiro do camarão vai provocar convulsões no seu estômago, e o que você vai querer, mesmo, é arroz, feijão, chuchu refogado, tomate e bife com batatas fritas. Diz um ditado que a melhor comida é angu com fome. Saudade é fome. Enquanto existir a fome, o angu será gostoso. Enquanto existir a saudade o amor será gostoso. Advirto-a, então: Se você tem idéias semelhantes às da menina da estória e planeja engaiolar o pássaro a fim de não ter saudade, na ilusão de que o amor pode viver de beijos e amassos, trate de livrar-se delas. Beijos e amassos são como camarão: deliciosos, excitantes. Mas, se servidos todo dia, enjoativos...

Você invoca a raposa de O pequeno príncipe contra mim, pois que ela diz que a saudade só tem sentido se, se sabe quando a pessoa amada volta. Aí, sabendo-se a hora da volta, começa-se o ritual da espera... Isso é muito verdadeiro e é muito bom. Mas vou invocar o Chico contra a raposa: “Saudade é o revés de um parto. Saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”. O filho nunca voltará. Resta a saudade como manifestação do amor. O quarto que se arruma é um rito de amor, sabendo-se que a pessoa amada nunca voltará.
Querida amiga: infelizmente o amor é feito com muitos “nunca mais” – a expressão mais triste que existe. Aí você pula de pássaro a sapo, perguntando-me se, no caso de o sapo não se transformar em príncipe no primeiro beijo, se deve insistir com a beijação. Aqui cabem algumas observações.

Primeira: Todo príncipe que é submetido a uma dieta de camarões sem trégua vira sapo.

Segunda: Há sapos resistentes a beijo. Prova disso é a estória da princezinha que deixou cair no açude uma bola de ouro que seu pai lhe dera de presente (o rei era doidão, sem juízo). Ouvindo o choro da menina, saiu da água um enorme sapo de olhos esbugalhados que disse que lhe daria a bola de ouro se ela concordasse em dormir com ele. Até hoje sapos dizem a mesma coisa a meninas tolas, só que hoje não se fala em “dormir com” mas em “ficar junto”. A menina concordou, mas logo que se viu de posse da bola saiu em desabalada carreira, deixando para trás o sapo e os seus pulos. Mas o sapo não se deu por vencido. Foi ao palácio, chamou o rei, relatou o acontecido, e o rei, doidão e sem juízo como já afirmamos, obrigou a menina a dormir com o sapo. Se fosse hoje, evidentemente, ela fugiria para a Pachá. Quando o sapo se aproximou dela, ela teve tanto nojo que o pegou por uma perna e o jogou contra a parede. Foi zás-trás. Ao cair no chão o sapo virou um garboso príncipe. Assim é: há sapos que só se transformam em príncipes quando são jogados contra a parede. Tente essa técnica.

Terceira: Se, após a magia dos beijos e a magia de se jogar o sapo na parede, o sapo continuar sapo, é porque ele é sapo mesmo. Não há magia que resolva. Nesse caso, a única solução é você virar sapa. Porque, se você for sapa, você achará o seu sapo um príncipe maravilhoso. Terão, então, muitos sapinhos.

Você me pergunta sobre o que fazer quando o coração acredita firmemente que o sapo é príncipe e o sapo diz que ele é sapo mesmo, geneticamente, não sendo coisa de opção... O que fazer? Acho que é preciso desconfiar do coração. O coração é ótimo para amar. Mas, por isso mesmo, suas opiniões não são confiáveis. Muita gente acreditou firmemente que o Sol girava em torno da Terra e que o nazismo era maravilhoso. Pode ser que o sapo esteja dizendo a verdade. A vantagem do sapo é que ele nunca baterá as asas, como o pássaro. Muita gente prefere sapos a pássaros. Os sapos são mais confiáveis. A gente sempre sabe onde estão: no charco. Já os pássaros – onde estarão? Como é dolorido vê-los aprontando para a partida! A vantagem dos pássaros sobre os sapos é que eles são belos: seres indomáveis, selvagens.

Uma pergunta: Por que é que você não deixa de ser a menina e transforma-se no pássaro? Bata as asas. Deixe o sapo esperando. Feito a Shirley Valentine. Quem sabe a magia acontecerá? Ainda não se testou o poder da saudade no coração dos sapos. Poder ser que funcione.


"Ela é mais sentimental que eu
Então, fica bem se eu espero um pouquinho mais."

4 comentários:

  1. Nooooossa bom demais ! amei o texto ! todo perfeito ! boa escolha Dedey!!! bjooo

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  2. "Nunca mais" é muito tempo...
    Lindo texto Andrey. Fiquei curiosa pelo livro.

    Beijos.

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  3. Rubem Alves trata com grande propriedade o tema do desgaste amoroso intrínseco ao cotidiano. Teoria bem defendida, mas, diga-se de passagem, não elaborada por ele. A associação da saudade à fome talvez nos remeta a Homero, primeiro grande poeta grego de cuja obra se tem conhecimento. Em Odisséia, Penélope resiste estoicamente aos arroubos de seus pretendentes, enquando seu marido, Ulisses, participa da Guerra de Tróia.

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  4. Acho realmente que o amor se manifesta com mais intensidade quando se sente saudade. Pois, quando sentimos falta de algo, sempre o queremos mais e mais e isso acontece também com o amor.
    Mas será que é realmente saudade, e não uma "mania" de querer o que não possui?! Pois, o desejo muitas vezes é despertado pela falta (saudade) ou por "não possuir" e isso pode ocorrer também com o amor, que pode ser um desejo.
    Afinal, o que é amor?
    Vivo pensando em perguntas de várias respostas e entre elas se destaca essa. Acho que a melhor explicação é que o amor é, matematicamente, um sistema possível indeterminado, ou seja, ele é possível de acontecer, porém, de varias maneiras que são explicadas através daquela pergunta, ou seja, o amor é um sistema que tem várias soluções e/ou problemas.
    Contudo, estou fugindo do assunto! huhahuau

    Texto muito bom!
    Abração ddey! ;)

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